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domingo, 20 de maio de 2012

Cemitério São Sebastião


FABRÍCIO CARPINEJAR
A cada sábado de 2011, a série Beleza Interior (coluna de ZH) percorre uma cidade diferente do Rio Grande do Sul à procura de histórias inusitadas, personagens inesquecíveis e pontos de vista especiais. Hoje, conheça o administrador do cemitério de Rosário do Sul.

Quarenta e sete mil defuntos num único cemitério.

Quarenta e um mil moradores na cidade.

Há mais morto do que vivo em Rosário do Sul, município da fronteira oeste do Estado, situado a 386 quilômetros de Porto Alegre. A larga vantagem numérica soa como folclore, mas é verdade.

— Caso a arrecadação do IPTU fosse com quem faleceu, Rosário seria rica — diz Ivan Muniz Soares, 73 anos, pai de três filhos e casado há cinco décadas com Terezinha Rosado Soares, 69 anos, a quem chama carinhosamente de primeira-dama.

Soares é o administrador do cemitério desde 1995, um carismático prefeito dos finados. Finalizou a contagem da população em julho, a partir de média de sepulturas por quadra. Seu expediente se inicia às 7h30min e se encerra às 16h45min. Devido ao temperamento cantante e hiperativo, de modo nenhum se aquieta no escritório.

— Do alto dos muros brancos, eu me imagino comandante de um imenso exército, convocando os anjos e as estátuas a combater comigo.

Dono de um otimismo napoleônico, Soares revista as tropas tilintando o molho das chaves pendurado na calça:

— Meu Ministério de Guerra estaria fortemente aparelhado, temos enterrados diversos combatentes da Revolução de 1923. Elegeria como meu chefe de gabinete o morto mais ilustre do local, o tropeiro e general federalista Honório Lemes, o Leão de Caverá, autor da frase "Queremos leis que governem os homens, não homens que governem leis".

Se alguém não acha uma lápide, Soares sabe exatamente onde está. Gravou cada uma das fotos 3x4 dos obituários e decorou milhares de epitáfios. Chega a percorrer dois quilômetros por dia arrumando vasos, recolhendo flores secas, vistoriando rachaduras e as condições das lajes.

— Procuro a família Oliveira.

— É no fundo, segue sempre reto, à direita, ao lado de uma capela azul — indica ao visitante Luiz Carlos Oliveira, 48 anos, que veio prestar homenagem ao túmulo paterno.

E a tarefa de localização depende exclusivamente de sua memória. As ruas não exibem número e nome. Não existe nem o registro da data de origem do cemitério por parte da prefeitura: os arquivos começam a partir de 1904, sem nenhum dado conservado do século 19.

— Muita gente se perde por aqui, neste mar de recordações. Faço questão de permanecer visível, por perto. Oriento os pedreiros nos novos enterros e participo da maioria dos funerais.

Soares não teme assombrações, sequer enxerga a morte com pesar e tristeza.

Defende a alegria do lugar, ponto de encontro para conversas animadas da velha guarda nos bancos de madeira, à sombra das árvores.

— Em vez de pensar que os mortos deveriam ter vivido mais, penso: que bom que eles viveram.

Seu entusiasmo toma o partido da transcendência. Destaca o lugar como um território curativo.

— Quando atravessa as duas figueiras do nosso portão, qualquer bêbado fica sóbrio no ato. Pode misturar cachaça, cerveja e uísque, não passará mal depois da visita. Pelo dom da graça, cemitério cura ressaca.

Rosário do Sul é toda cercada de rios e arroios, que compõem a bacia Santa Maria. De propósito, segundo Soares, para facilitar as baldeações das almas ao paraíso.

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